O Marco Legal dos Seguros e os documentos da recusa de cobertura do sinistro

dezembro 10, 2025

Por Mônica Regina Rudolf, advogada sócia do escritório Vanzin & Penteado Advogados

A Lei nº 15.040/2024 estabelece o Marco Legal dos Seguros inovando o regime jurídico do contrato de seguro no Brasil, inclusive no que concerne à regulação e liquidação de sinistros. Nesse sentido, especialmente quanto aos documentos da recusa de sinistro, destacam-se as disposições contidas nos arts. 80, II, 82, 83 e 86, § 6º, da nova lei, sem correspondência no Código Civil de 2022.

O art. 80 estabelece deveres ao regulador e ao liquidante de sinistro, dentre os quais, no inciso II, fornecer aos interessados o conteúdo das suas apurações, quando solicitado, respeitada a exceção do art. 83, parágrafo único, que trata dos documentos confidenciais e sigilosos.

No art. 82 a lei dispõe que “o relatório de regulação e liquidação do sinistro é documento comum às partes.” Com essa disposição, a lei rompe com o entendimento judicial predominante de unilateralidade do procedimento, reconhecendo o relatório de regulação de sinistro, embora produzido pela seguradora, como documento comum às partes, assegurando ampla participação e fiscalização pelos interessados, além de conferir maior valor probatório ao referido documento.

Ainda, o art. 83 assegura aos interessados acesso aos documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e liquidação do sinistro, que fundamentaram a decisão da seguradora pela negativa, total ou parcial. Contudo, o parágrafo único dispõe que a seguradora não está obrigada a entregar documentos e demais elementos probatórios considerados confidenciais, sigilosos por lei ou que possam causar danos a terceiros, os quais somente serão apresentados se houver decisão judicial ou arbitral que assim determine.

Importa esclarecer que existem documentos obtidos durante a regulação de sinistro que, por sua natureza confidencial, não podem ser disponibilizados, mesmo quando fundamentam a negativa de cobertura, sob pena de comprometer a proteção de dados pessoais, sigilo empresarial, colocar em risco a integridade física de profissionais ou gerar risco institucional. Entre tais documentos, podem ser citados, à título exemplificativo, relatórios de sindicância, levantamentos de campo realizados pelo regulador, dados de mercado, informações concorrenciais ou relativas à intimidade dos envolvidos que, sem consentimento do titular, sejam consideradas sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A problemática envolvendo documentos confidenciais, sigilosos ou com potencial de lesar direitos ou interesses de terceiros foi objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.836.910/SP, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 27/09/2022.

O Ministro Relator enfatizou que a regulação de sinistro é atividade complexa e multidisciplinar, essencial ao setor securitário, envolvendo não apenas a apuração do evento e a correta liquidação da indenização, mas também a prevenção e repressão de fraudes que afetam o mutualismo e o custo dos prêmios. Ressaltou, ainda, que deve haver cautela no compartilhamento de documentos da regulação que poderia expor o know-how da seguradora e da empresa reguladora, gerando desequilíbrio concorrencial, riscos pessoais a colaboradores e informantes, e potenciais danos morais e materiais a segurados e terceiros beneficiários de seguro.

Ainda relatou que o sigilo de determinados documentos da regulação, quando devidamente fundamentado, não configura negativa de transparência, mas medida legítima de proteção institucional e de eficiência da atividade regulatória e securitária. Nesse sentido, não só o consumidor merece proteção, como também a livre iniciativa e o livre exercício da atividade econômica (arts. 1º, IV; 170, IV, parágrafo único; e 174 da CF), conforme entendimento consolidado do STJ no julgamento do REsp nº 1.846.502/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 20/04/2021.

Quanto ao prazo de manifestação da seguradora sobre a cobertura, o art. 86, caput, da nova lei prevê um prazo decadencial de 30 dias, contado da reclamação ou aviso de sinistro. Contudo, em casos de seguros de maior complexidade, o prazo poderá ser prorrogado por até 120 dias, desde que definido pela SUSEP (§ 5º).

Por sua vez, o § 6º do art. 86 estabelece que a recusa de cobertura deve ser expressa e motivada e a seguradora não poderá apresentar novos fundamentos da negativa após manifestação inicial, salvo quando tomar conhecimento de fatos anteriormente desconhecidos.

Ao impossibilitar a apresentação de novos argumentos quanto às razões da negativa, a nova lei busca evitar incertezas e práticas protelatórias, garantindo ao segurado previsibilidade e segurança jurídica. Contudo, sua interpretação literal pode suscitar violação a princípios constitucionais, pois ao impedir que a seguradora apresente novos fundamentos da recusa, mesmo em eventual processo judicial, o dispositivo restringe o exercício do contraditório e da ampla defesa, garantias asseguradas pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal.

Nessa perspectiva, a limitação à inovação argumentativa se restringe à esfera administrativa, sem impedir que, em juízo, a seguradora exerça plenamente seu direito de defesa, sob pena de vulnerar princípios estruturantes do devido processo legal e acarretar cerceamento de defesa.

Além disso, a exigência de fundamentar de forma definitiva a recusa na primeira manifestação poderá gerar maior cautela na aceitação de riscos pelo mercado segurador, refletindo em prêmios mais elevados ou restrição da oferta de determinados produtos. A medida também pode acarretar desafios operacionais relevantes no processo de regulação de sinistros, especialmente nos contratos de grandes riscos, em que a apuração dos fatos e a coleta de elementos probatórios demandam maior tempo e complexidade técnica. Ainda, poderá haver impacto na capacidade de resseguro desses contratos.

Para fortalecer a segurança jurídica e a padronização das práticas do mercado será necessário um alinhamento das normas infralegais às diretrizes da nova lei, a fim de garantir equilíbrio entre a celeridade esperada e a complexidade da regulação de determinados tipos de sinistros.

Sob esse viés, vale ainda mencionar que a SUSEP publicou em 4 de novembro de 2025, o Edital de Consulta Pública nº 10/2025, que tem como objetivo adequar a Circular Susep nº 621/2021 sobre seguros de danos, aos dispositivos da Lei nº 15.040/2024, concedendo prazo de 20 dias, até 25 de novembro de 2025, para receber contribuições.

Sobre o tema em questão, os seguintes artigos se destacam:

“Art. 75. A seguradora terá o prazo máximo de trinta dias para realizar a regulação de sinistro e manifestar-se sobre a existência de cobertura, contados da data de apresentação da reclamação de sinistro, sob pena de decair do direito de recusá-la.

§ 1º A recusa de cobertura deve ser expressa e fundamentada, não podendo a seguradora inovar posteriormente o fundamento, salvo quando, depois da recusa, vier a tomar conhecimento de fatos que anteriormente desconhecia.
§ 2º No caso de recusa justificada por vício não aparente e não declarado no momento da contratação do seguro, a seguradora deverá comprovar a existência do vício e o nexo causal com o sinistro.
§ 3º Recusada a cobertura, no todo ou em parte, a seguradora deverá entregar ao interessado no sinistro os documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e a liquidação do sinistro que fundamentaram sua decisão.
§ 4º A seguradora não está obrigada a entregar documentos e demais elementos probatórios que sejam considerados confidenciais ou sigilosos por lei ou que possam causar danos a terceiros, salvo em razão de decisão judicial ou arbitral.
§ 5º Poderá ser fixado, em regulamentação específica, prazo superior ao disposto no caput para os tipos de seguro em que a verificação da existência de cobertura implique maior complexidade na apuração, respeitado o limite máximo de cento e vinte dias.
 § 6º No caso de seguro para cobertura de grandes riscos, o prazo descrito no caput poderá ser de até cento e vinte dias.”

Art. 83. O relatório de regulação e liquidação do sinistro é documento comum às partes.
§ 1º O relatório de regulação e liquidação de sinistro deve conter no mínimo:
I - as coberturas afetadas pela reclamação do sinistro e seus respectivos limites;
II - a cronologia de todos os eventos relacionados à regulação, liquidação e pagamento do sinistro, contendo, no mínimo, as datas de reclamação, de início e fim da regulação e da liquidação e de pagamento da indenização e, quando houver, os períodos de suspensão por solicitação de documentos complementares;
III - a data limite contratual para regulação e a data limite contratual para liquidação do sinistro;
IV - a memória de cálculo da indenização por cobertura incluindo os critérios para apuração do valor devido pela seguradora e o detalhamento de franquias, rateio, multas, juros e atualização monetária eventualmente aplicadas;
V - os documentos que comprovem os custos individualizados dispendidos, com descrição dos itens e peças utilizadas, na reposição, reparo do bem ou prestação de serviço, quando a indenização for realizada por estes meios; e
VI - no caso de recusa de cobertura, a descrição detalhada da motivação e dos fundamentos fáticos, contratuais e legais para recusa.
§ 2º A seguradora deve encaminhar ao interessado no sinistro o relatório de regulação e liquidação do sinistro sempre que solicitado, no prazo de dez dias a contar da solicitação.”

 A minuta prevê correspondência com dispositivos da Lei 15.040/2024, além de estabelecer requisitos mínimos de conteúdo para relatórios de regulação e liquidação de sinistro, que devem ser fornecidos pela seguradora ao interessado em até 10 dias da solicitação.

Em conclusão, se por um lado a Lei do Contrato de Seguro assegura relevante proteção dos segurados ao promover maior transparência quanto as razões da recusa e participação na regulação de sinistros, por outro lado impõe desafios interpretativos, regulatórios e operacionais significativos.

O princípio da transparência presente no compartilhamento de documentos da regulação e liquidação de sinistro que fundamentaram a negativa da cobertura pela seguradora, não se confunde com a divulgação irrestrita de informações. O próprio legislador, ao preservar o sigilo e confidencialidade de determinados documentos (art. 83, parágrafo único, da Lei nº 15.040/2024), reconhece que o dever de disponibilização de documentos produzidos na regulação e liquidação de sinistros deve conviver com outros valores igualmente relevantes, como proteção de dados pessoais, sigilo empresarial e confidencialidade de informações cujo acesso irrestrito possa lesar direitos ou interesses de terceiros.

Assim, o sigilo a determinados documentos e elementos probatórios que sustentam a negativa da seguradora, especialmente aqueles que contenham informações sensíveis, estratégicas ou capazes de causar danos a terceiros, constitui medida legítima e necessária de equilíbrio entre os princípios da boa-fé, do mutualismo, da transparência, da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica, que regem o contrato de seguro.

Ademais, frente a não obrigatoriedade de entrega pela seguradora de documentos sigilosos, confidenciais ou com informações com potencial de lesar terceiros, salvo em razão de decisão judicial ou arbitral, não prevalece a limitação à inovação argumentativa do art. 86, § 6º, para além da fase administrativa, sob pena de acarretar cerceamento de defesa da seguradora.

Ainda, a adequada aplicação da lei exigirá regulamentação complementar pela SUSEP e ajustes de cláusulas contratuais, além da atuação prudente do Poder Judiciário, de modo a assegurar equilíbrio entre a proteção do consumidor, a livre iniciativa, o livre exercício da atividade econômica, a segurança jurídica e o direito ao contraditório e a ampla defesa.

Somente uma interpretação harmônica dos dispositivos da lei e princípios basilares do Estado Democrático de Direito permitirá concretizar os objetivos da nova legislação, preservando a eficiência da regulação de sinistros, o combate a fraudes, a estabilidade do mercado e a mutualidade que sustenta o contrato de seguro.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Comentários à lei do Contrato de seguro/coordenadores Luís Antônio Giampaulo Sarro… [et. al.]. - 1.ed. - São Paulo : Rideel, 2025. Págs. 196-201.
https://www2.susep.gov.br/safe/SCP/app/consultas-publicas

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